“Ainda bem que eu piloto helicóptero....”
por Ronald Lima (3 Velhos Nerds)
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Adaptação da peça peca por não saber equilibrar naturalismo e "teatralidade"
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Cartaz em estilo capa de HQ de André Kitagawa |
Em A Tempestade*, a peça de teatro de Willian Shakespare, temos uma história de isolamento, dor e reconciliação. São também características do filme brasileiro Borrasca. O que poderia superar a traição senão a morte e o amor? Decisões precisam ser tomadas para se seguir com a vida, mesmo que a vida não tenha nada de bom a oferecer.
Por meio do relato de dois amigos vamos conhecendo a vida de um terceiro amigo ausente. Os dois amigos presentes são: o escritor misantropo Gabriel, interpretado pelo dramaturgo Mário Bortolotto (autor da peça que deu origem ao filme), e o tímido Diego - o ator Francisco Edo Mendes. Borrasca tem a direção de Francisco Garcia, um dos fundadores da produtora Kinosfera Filmes. O filme ganhou dois prêmios de melhor ator à Mário Bartolotto: um no Festival português de Santa Maria da Feira e o outro no Cine PE - Festival Audiovisual realizado todo ano em Recife, Pernambuco.
O amigo ausente chama-se Enzo. Ele é o pretexto para essa extensa sucessão de reminiscências sobre a vida, a amizade, o amor e o sexo. Afinal, “as mulheres não conseguiam resistir ao Enzo...” . Ele parecia ser “O Cara” , o que não devia ser difícil em comparação a estas duas figuras que conversam tal e qual carpideiras remoendo as memórias e uma inveja não assumida. Deduzimos pelo diálogo que Enzo, errasse ou acertasse, correu os seus riscos e viveu. Viver não é para os fracos, nem para aqueles que decidem pautar as suas vidas pelas comparações com as vidas alheias...
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Gabriel (Mário Bortolotto): o tom certo entre o teatral e o naturalismo. |
Partindo desse fato e da ausência do amigo, eles reavaliam as suas vidas e percebemos que o modo de vida de Enzo era o que cada um deles desejaria ter tido. Na verdades eles também se dão conta disso, mas não assumem essa constatação.
Agora vamos ao que o filme nos apresenta. Toda a história se passa no minúsculo apartamento de Gabriel, que dá ao filme um ambiente para as confissões sem que os personagens tenham exatamente vontade de faze-las. O filme usa e abusa de tons azuis e verdes, muito contrastes e sombras, além ter belos movimentos e enquadramentos muito próximos dos atores, fazendo um quadro harmonioso (ponto para o diretor de fotografia) .
Mas, quanto a edição sonora, esqueceram-se da chuva, e no final esse detalhe fará diferença. A sonoplastia é daquelas que fazem questão de demonstrar nariz escorrendo, pés arrastando-se e copos sendo preenchidos por uísque, mas barulho de chuva que é bom... Mesmo procurando transmitir um ambiente de confessionário, não custava nada o filme permitir que déssemos uma olhada na janela para conferir a forte chuva que se mostra logo no início. Nem precisava mostrar a rua, já que o plano parece ser destacar o isolamento dos dois. Água escorrendo forte pelo vidro e algumas expressões de raiva ou surpresa bastavam. Afinal, o título do filme faz alusão a chuva torrencial que cai durante a história. Mas até esses sons ambientes vão sumindo aos poucos. Se ainda estão lá acabam sendo sufocados por tanto falatório. Um maior cuidado com a edição de som, intercalando esses sons ambientais - sendo destacados, por exemplo, nos momentos de pausas dos diálogos -, enfatizariam mais a sensação de alheamento dos personagens em relação ao mundo exterior, traduzindo melhor uma atmosfera de isolamento.
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Dois amigos assumidamente derrotados pela vida. Um pouquinho de luz... Perceberam? |
Portanto dureza mesmo foi aguentar frases de efeito procurando evocar qualidades e defeitos de cada um dos três amigos - principalmente de Enzo -, ora num tom intimista, ora aos gritos - esses últimos totalmente duros e à toa. A direção de atores peca por não equilibrar a interpretação dos atores - principalmente no caso de Diego que, de forma demasiadamente teatral, não consegue convencer que realmente está querendo dizer o que diz. Aliás, todas as falas, embora usem termos chulos, são muito articuladas, como se os atores estivessem no teatro e não em uma tela de cinema. Há uma 4ª pessoa também (quase) ausente no ambiente. Gabriel o cita várias vezes mas, em determinado momento, lhe é cobrado dizer o nome soletrado como se não o tivesse dito instantes antes. Nossa...
O roteiro mostra uma coleção de frases ditas que soam sem nenhuma conexão entre elas. Chegam a se contradizer, o que não seria problema em um texto que demonstrasse o fluxo contínuo de pensamento, mas isso pediria um roteiro mais elaborado.
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Diego (Francisco Edo Mendes): Excesso de teatralidade na interpretação. |
Algumas colocações são interessantes e legais, mas parece que todo o diálogo foi posto em pedaços de papel em um saco plástico e os personagens vão falando a medida que escolhem a esmo os papéis no saco para lerem.
- Aí... Que fracassado é você hein!?
- Somos todos... Mas o Enzo?! O Enzo? O Enzo Não! As mulheres não conseguiam resistir ao Enzo”
- Já disse isso não? (JÁ!!!) Então direi de novo de um modo que soe diferente agora tá certo? “As mulheres não conseguiam resistir ao Enzo” Porque ele é o Enzo... Entende?
- Alguns nascem assim e outros não, você não nasceu assim... Entende...? (Tá, entendi)
Entendi que em toda patota tem um Alfa que, em momentos, pode ser o fator de desunião, mas que, de fato, é o agregador. (Acabou?)
A sensação é daquelas conversas que se ouve sem querer e o primeiro pensamento que lhe vem é: “-Meu Deus... ! Eu NÃO quero ouvir isso.”
Há uma tentativa em criar empatia em relação a Gabriel e Diego e tudo fica entre um tédio e alguns lampejos. Os dois transmitem uma sensação de fastio o tempo todo, principalmente Gabriel. Diego instiga mais o amigo, mas o espectador absorve muito mais o fastio e o tédio do que uma profunda relação de amor e ódio. Alguns minutos a menos na edição aliviariam com certeza o conjunto.
E assim vão os dois tecendo seus fracassos e arrependimentos sem se mostrarem arrependidos. Puro remorso, misantropia total. Ao final, querendo evocar a brevidade e os acasos da vida, Gabriel se surpreende com o término da forte e curta chuva, e nos dá um aviso bem insosso, mas procurando causar impacto: a tal chuva foi breve, uma borrasca apenas, mas que devemos estar prontos e alertas para quando vier uma tempestade. Que tempestade? Que chuva? Que borrasca? A do começo? Ah... Essa verborragia toda, a franqueza explícita de um sobre o outro, além do Enzo, não lhes foi tempestade suficiente? Então somente se o céu cair sob vossas cabeças, puxa vida... Vamos a um Big Mac? Não pode ser o Big Bob? Verdade, prefiro o Bob’s.
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É nessa penumbra assim mesmo com poucas variações que o filme vai do princípio até quase ao fim... |