Dois Improváveis amigos
por Ronald Lima
A necessidade do diálogo e da alternância do poder
![]() |
Netflix e Fernando Meireles "bateram um bolão!!!" |
Nos confrontamos atualmente um processo histórico já definido como "crise civilizatória", marcado por um recuo da democracia e retrocesso social em vários lugares, portanto todo esforço de aproximação entre povos, países, religiões e correntes políticas deve ser aplaudido e estimulado, esse é o ponto forte do roteiro de Anthony McCarten, de A Teoria de Tudo (2014), O Destino de Uma Nação (2017) e Bohemian Rhapsody. Mas poderia ir um pouco mais fundo em diversas controvérsias pela qual a Igreja passa ultimamente, explicaria melhor as razões e motivos que causaram tamanha diferença de opiniões entre os dois personagens. Uma antipatia mútua dá lugar a um respeito relutante e termina fortalecendo a amizade. A narrativa sobre o relacionamento entre Joseph Aloisius Ratzinger, o Papa Bento XVI, interpretado por Anthony Hopkins, o terrível Hannibal Lecter de Silêncio dos Inocentes ('991) de Jonathan Demme , e seu sucessor, Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco I a cargo de Jonathan Pryce, o Alto Pardal da 5ª Temporada de Game of Thrones e só para salienta-lo em outro papel como argentino ele foi o Coronel Juan Perón de Evita (1996) de Alan Parker. Em Dois Papas (2019) da Netflix, personalidades diametralmente opostas que, independentemente dos sentimentos que você possa levar para o filme, não são pintados como bons ou maus. Os muitos questionamentos sobre o papel da Igreja hoje em dia e questões espinhosas são apenas pano de fundo, não é a intenção da direção, que esta a cargo de Fernando Meirelles de Cidade de Deus (2002). A enfase é o lado humano e os conflitos pessoais de dois senhores que passaram um pouco de tudo na vida, na vida eclesiástica inclusive e diria principalmente. Sobre essas controvérsias mencionarei mais a frente. Serão importantes.
![]() |
Bento XVI (Anthony Hopkins no alto) e Jorge Mario Bergoglio (Jonathan Pryce, abaixo): De um lado o "canibal", do outro, o "Alto Pardal"... |
O que torna esses conflitos interessantes é que eles dependem do divino. Se você é uma pessoa que acredita em Deus, luta com a desumanidade do homem para com o homem e com o silêncio ao tentar falar com seu criador, uma situação difícil o suficiente para a maioria da humanidade, imagine então lidar com isso e com 1,2 bilhão de pessoas que depende de você. A Igreja Católica existe como uma entidade política e espiritual, e é importante para a vida de desse enorme nº de pessoas, onde isso deixa Bento e Bergoglio? O que significa liderar a Igreja Católica nos dias atuais?
Bento é resistente a mudanças, enquanto Francisco as considera necessárias. Quando o filme começa, o ano é 2005, durante o conclave papal que elegerá Ratzinger, Ao encontrarem-se pela 1ª vez no Toilete, Joseph Ratzinger, pergunta a Bergoglio que hino ele está assobiando. "Dancing Queen" do ABBA é a resposta de Bergoglio, e dessa maneira divertida vemos a diferença grande entre os dois. O filme embala o início das votações ao som de “Dancing Queen”. Conforme os votos seguem, Francisco, então como cardeal Jorge Mario Bergoglio, da Argentina, fica em segundo lugar, para a surpresa de alguns ali e principalmente de Ratzinger. Bergoglio faz amigos onde quer que vá, parando em bares para assistir a jogos de futebol e renunciando ao uniforme do cardeal por roupas menos formais e pregando aos pobres. Ratzinger em um dos poucos momentos em que consegue falar de si mesmo admite que poderia ter se dedicado mais a vida do que aos estudos e a solidão.
![]() |
"Eu queria ter na vida simplesmente Um lugar de mato verde Pra plantar e pra colher" |
Basicamente todo filme é ocupado por esses dois homens idosos lutando educadamente com a teologia, e isso é algo inesperadamente divertido por contarmos com dois grandes atores muito bem caracterizados fisicamente e precisamente imersos em suas personas, os pequenos gestos de cada causam sensação, Hopkins, dominou uma risada sem alegria mas que se torna hilária ao ser confrontada a um permanente gesto de impaciência no olhar de Pryce “- meu Deus, o que que eu estou fazendo aqui?”. Essa dinâmica avança à medida que os dois homens trabalham, ou pelo menos tentam trabalhar e entender suas posições opostas e o efeito que seus caminhos escolhidos tiveram sobre sua fé.
![]() |
"You can dance, You can jive. Having the time of your life. See that girl. Watch that scene. Digging the Dancing Queen" |
E agora chegamos nas posições opostas.
"- Você tem sido um dos meus críticos mais severos e há muita competição por esse título."
“- Nunca diretamente!", protesta o cardeal.
"- Você dá abertamente sacramentos para aqueles que não estão em comunhão - para os divorciados, por exemplo."
"- Acredito que dar comunhão não é uma recompensa para os virtuosos!", rebate Bergoglio,
"- é alimento para os famintos."
"- Ah!", como se o cardeal estivesse preso em uma armadilha.
"- Então, o que importa é o que você acredita e não o que a igreja ensina há centenas de anos."
“- Vim chamar pecadores”, ele observa,“- a igreja ensina isso há milhares de anos”.
![]() |
"- Tem resposta para tudo não é Bergolio?" |
Em determinado momento o filme passa a relatar em intercalados flashbacks, a vida do jovem Jorge Bergoglio (A Netflix tem fixação por flashbacks), porém pouca informação temos sobre Joseph Ratzinger, falha grande, pois a idéia, como foi comentado, não seria mostrar o lado humano de cada um? Principalmente seus erros? O relato da vida do jovem Bergoglio, interpretado pelo ator argentino Juan Minujín, fica entre a renúncia ao amor de sua vida e trabalho secular e aos primeiros anos de sua vida clerical, Bergoglio durante a ditadura militar Argentina procurou ajudar aos seus mas infelizmente de modo vacilante, tentando simplesmente afasta-los de tudo que poderia ser dado como suspeito, a dificuldade que Bergoglio jovem não percebia é que TUDO poderia ser suspeito naquela época. Há cenas fortes de tortura e execuções, para que saibamos que esse ocorrido na Argentina o foi em toda América do Sul a favor de um alinhamento pró norte americano, alinhamento que não nos trouxe nenhum benefício, não nos tornamos potência militar e tampouco econômica, a não ser aprofundar mais e mais nossas desigualdades sociais e políticas, a intenção norte americana era manter submissão. Bergoglio se culpa e reconhece sua falha. Bento XVI revela em tom de cumplicidade que costuma fazer "concessões" ao longo da vida. Bergoglio o corrige e se posiciona: "- Não! Eu mudei!", essa frase é consistente com o comportamento que iria assumir depois, comportamento esse que o levou ao Papado. Mas... E o que sabemos sobre Ratzinger no filme? Apenas uma leve insinuação em ter pertencido a Juventude Hitlerista, em uma cena ele não toca exatamente “Lili Marlene” ao piano mas ao relatar ser uma música dos anos 30 passa a deixa, mas é uma informação só para iniciados, fica muito de leve ( “Lili Marlene” foi uma canção usada pelas tropas alemãs durante a 2ª Guerra, e sob efeito “macunaíma” de assimilação cultural, se tornou famosa entre as tropas aliadas também)...
Voltando a Bento XVI, sim, ele pertenceu a Juventude Hitlerista, porém o regime nazista obrigou muitos a ingressarem nas instituições do partido, e aos mais religiosos principalmente, para tentar expurgar suas “fraquezas” judaico/cristãs. Essa ausência se deveria ao fato de Bento XVI ter sido muito impopular? Mesmo o filme mostrando que teve algum apoio? É bonita e emocionante a cena próxima ao final em que ele sai ao povo em plena Capela Sistina sem segurança sem nada, estimulado pela conversa que teve com Bergoglio. A saber: - A Capela Sistina foi um capricho a parte da produção pois foi reconstituída em estúdio com direito a efeitos 3D e fundo verde e reprodução de algumas pinturas. Bento XVI se tornou inclusive meme recorrente por se parecer demais com o cruel Imperador Palpatine de Star Wars. Acreditaram que muitos ainda estariam a par de suas muitas falhas e omissões durante o Papado? Não creio... Tampouco tenho resposta para tão poucas referências sobre sua vida pregressa, talvez para incentivar o ponto principal do roteiro, a busca por redenção. Para muitos críticos essa falta é grave e imperdoável no filme. De fato é grave, mas como estamos sob o tema da conciliação.... Continuemos.
O início desse texto relata a dificuldade que temos hoje em conviver com diferentes opiniões sejam de que ordem for, como o filme tem como pano de fundo a Religião Cristã e essa o segmento Católico Romano, é necessário saber que parte dessa responsabilidade, origem e causa de divisões, é justamente a Igreja Católica, outras denominações cristãs também, é claro. Muito reveladora a reclamação de medo e repulsa que Bento XVI faz ao tentar culpar o “relativismo” por todas as mazelas que a Igreja passou lidar, culpar o “relativismo” . Na cabeça de conservadores “relativismo” é sinônimo de “fazer o que quiser” pois tudo sendo relativo, depende de cada ponto de vista, não há mais uma certeza. É assunto corriqueiro esse termo em igrejas protestantes também, e principalmente nas tradicionais, atinge um pouco mais leve as pentecostais e as neo-pentecostais nem um pouco, essa é movida apenas por preconceito e medo. A religião atualmente briga com a realidade e isso causa mais ódio que soluções.
Ratzinger fez parte de um grupo muito fechado e reacionário dentro da Igreja Católica. Muito antes de subir como Papa perseguiu lideranças consideradas “marxistas”. Numa época em que o Vaticano se alinhava com a política externa de Ronald Reagan, a diplomacia de João Paulo II na América Latina consistia em enfraquecer lideranças como a de dom Helder Câmara (1909-1999) e dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), empenhados em denunciar o regime militar no Brasil e em outros países do Continente e defender causas sociais. João Paulo II acreditava estar cumprindo a famosa 3ª profecia de Maria, profecia dada as 3 pequenas crianças pastorzinhas em Fátima, cidade de Portugal. Ratzinger fez parte da Cúria Romana durante décadas. Ele obrigou Frei Leonardo Boff a fazer “voto de silêncio”. Não aceitam que a esquerda reavaliou-se para incluir religião em seu processo. Também perseguiu aos outros dois acima mencionados. E isso para citar algo próximo a nós.
Esse é um relato rápido da vida de Ratzinger, afinal em Dois Papas revelou-se a fundo a vida do simpático Bergoglio, e nem um pouco a vida de Joseph Ratzinger, essas informações acima lhe ajudarão a situar-se melhor no enredo do filme, acredite... E nem foram aqui mencionados os escândalos sobre pedofilia que vieram a tona durante seu Papado e toda confusão sobre as finanças do Vaticano, essa última está mais ou menos presente no filme. É o pano de fundo dos noticiários.
![]() |
Não tem perdão. Católico bom é católico inculto. |
Há um momento em que ambos revelam seus medos.... E aí ficamos a par das pretensões de Bento XVI, sim, ele errou, mas pretende se redimir, é incrível, mas parte dele a iniciativa de conciliação, reconhece que a Igreja necessita de mudanças, mesmo que essas sejam contrárias a seu modo de ver e viver. O futuro Papa Francisco I de fato está em uma posição “- Meu Deus, o que que eu estou fazendo aqui?”. Hopkins e Pryce demonstram muito tato ao encaixar um desconectado a entrar e a viver em mundo mais humano, reconhecer as músicas "Yellow Submarine" e "Eleanor Rigby" e dançar Tango. Qual o preço do perdão? A resposta é fácil, difícil é conceder e aceitar. O perdão quando de fato manifesto não faz aquele que se sente culpado recuar e sim além de reconhecer a falha também se dispor a caminhar na direção contrária ao caminho errado que seguia.
![]() |
"All the lonely people Where do they all belong?" - "Todas as pessoas solitárias De onde todas elas são?" - Letra de Eleanor Rigby |
Emblemático o final da Copa do Mundo de 2014 ter sido entre Alemanha e Argentina e realizada no Brasil, Maracanã. Poucos tempo depois um golpe cairia sobre nós, alimentado por esses medos plantados lá trás, desde os anos 60, onde temia-se hippies e comunistas. Hoje Francisco I sofre acusações tolas vindas dos E.U.A. Não exatamente preocupados com moral e bons costumes, isso é isca para enganar e arregimentar, os ataque é por temerem o discurso dele contra essa exploração do homem pelo homem em nome de um sistema financeiro excludente e escravizador. Esse filme vem em boa hora. Apesar de algumas faltas em relação a biografia pregressa de Ratzinger. A cena com os dois torcendo e bebendo cerveja é ótima. Que passemos a viver assim com os nossos diferentes. Há a inserção do encontro real entre Bergoglio e Ratzinger durante cena da partida de futebol.
![]() |
"Aah, look at all the lonely people" - "Aah, olhe todas essas pessoas solitárias" - Letra de Eleanor Rigby |
Nenhum comentário:
Postar um comentário