Entre a Meritocracia e a Espada
por Alexandre César
Série brasileira surpreende entre erros e acertos
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Só 3% têm "mérito" de verdade. Mas, o que é "mérito" e quem define esse "mérito"? |
"Você acha que está lutando contra todas as injustiças do mundo e que, destruindo o processo, você terá igualdade. Mas a verdade é que não existe nem heróis e nem vilões. Nem injustiçados, nem desigualdade. Porque a gente sabe que existe uma única diferença entre as pessoas: as que têm mérito e as que não têm. E ponto."
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Cena do piloto original, disponível no YouTube. O conceito era mais cru ainda do que na série da NETFLIX, que retrabalhou-o... |
Estamos em uma distopia de uma realidade alternativa ou de um futuro próximo. Com estas palavras, Ezequiel (João Miguel, numa interpretação muito boa - oscilante entre o louco manipulador e o visionário sofrido) apresenta aos candidatos o objetivo final do “processo”, que da grande massa de miseráveis desesperados irá separar uma ínfima parcela (os 3% do título) para ter uma melhor oportunidade de vida no Maralto, uma ilha onde todos vivem bem, com acesso às benesses de uma vida confortável e com acesso a medicina e tecnologia de alta qualidade. Todas as provas (individuais e coletivas) são eliminatórias e você só pode participar desta competição uma vez na vida, ao completar 20 anos. A reprovação implica no fato de que você irá continuar o resto da sua vida na miséria e na desesperança do continente, junto com o resto da população - os 97% que não têm “mérito”.
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O seriado enfatiza a idéia veiculada pela elite para a massa de que "não tem para todos"... |
A ideia de 3%, série de ficção científica brasileira lançada pelo serviço de streaming Netflix, ainda que meio datada (o boom das distopias com divisão de classe na ficção voltada para o público jovem já está passando), tem seu atrativo. Afinal, o conceito de que, todo ano, jovens que tem 20 anos de idade participam de um processo onde apenas 3% são selecionados para viver num paraíso avançado e utópico no meio do mar, encontra paralelos com situações da vida real, como prestar um vestibular ou um concurso público. E as cobranças internas e externas a que se sujeitam os competidores, em busca de uma chance de qualificação à uma vida melhor, não difere muito do que pode ser visto no competitivo mercado de trabalho dos grandes centros urbanos.
1ª Temporada
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O Processo: competição em que todos com 20 anos podem participar |
Acompanhar os testes aplicados por Ezequiel (cuja lógica é meio questionável, mas, como o objetivo é a eliminação de competidores...) - que decidem se Michele (Bianca Comparato), Fernando (Michel Gomes), Joana (Vaneza Oliveira), Rafael (Rodolfo Valente), Marco (Rafael Lozano) e tantos outros jovens são “dignos” de uma vida melhor - é interessante, na medida que vai mostrando como aflora, entre os participantes da competição, não o que há de mais nobre em cada um, mas sim o seu lado mais primitivo. No fim das contas os participantes só tem uma chance na vida de passar. Assim, vemos trapaças e alianças sendo construídas e destruídas, tal qual num Reality Show. O elenco é bom no geral, cada um tendo o seu momento de destaque, apesar de nenhum dos participantes oferecer uma atuação extraordinária e incomodar um pouco uma certa linearidade do jeito de falar deles - tanto dos habitantes do Continente quanto do Maralto -, não havendo um sotaque, uma lista de gírias ou algo semelhante que diferenciasse o modo de falar das duas sociedades.
O formato Netflix, de disponibilizar todos os episódios de cada temporada de uma vez, ajuda a série, provavelmente prendendo muitos espectadores até o final pela simples curiosidade de ver como tudo se desenlaça. Na 1ª temporada não recebemos informações concretas de como foi realmente a vida dos jovens participantes nos 20 anos antes do processo, ou o que os faz desejar tanto enfrentar estes testes. Só deduzimos algo a partir do aspecto maltrapilho da massa participante (que, às vezes, parece forçado). Imaginamos, sem muitos dados que reforcem isso, de que qualquer coisa deve ser melhor do que a realidade de mendigo que parecem enfrentar cotidianamente.
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Big Brother Brasil: Ezequiel (João Miguel) e a massa. |
O orçamento apertado da 1ª temporada se reflete em muitos aspectos de forma negativa, prejudicando a criação deste universo ficcional, dificultando que os espectadores aceitem de cara a adoração das pessoas pelo Maralto. Não recebemos informação visual sobre a ilha idílica, só se sabe o que os personagens comentam sobre a localidade. As tecnologias que vemos ser usada, apesar de aparente eficiência e de boa plasticidade (acerto da direção de arte), não parecem ser tão avançadas como vemos em outras produções do gênero. Os efeitos visuais parecem tirados de um videogame de baixa resolução. E como nada é feito de uma maneira impressionante, nós temos que acreditar no que Ezequiel e os outros responsáveis pelos testes falam, justificando as lendas e rumores maravilhosos criados sobre como é viver do lado bom da vida - apesar de nem todos participantes do processo acreditarem nisso piamente. A maioria deles vai se agarrando ao mito porque precisa dele em face à dura realidade.
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Videogame: O baixo orçamento se reflete na qualidade do CGI... |
Poucas produções, porém, conseguem estabelecer tão bem um universo com poucos recursos e, neste aspecto, as comparações com Black Mirror, outro seriado da Netflix, não são exageradas. Além das boas escolhas de locações face à notória escassez orçamentária, empregados nas vistas aéreas, vemos uma efetiva identificação com o nosso momento sócio-político-social vigente, onde essencialmente, se pensa em termos de “ou somos nós ou são eles”. Mas, quem somos “nós” e quem são “eles”?
2ª Temporada
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Ezequiel (João Miguel): oscilante entre o louco manipulador e o visionário sofrido |
Se a primeira temporada foca nas contradições e desdobramentos de uma seleção desumana que escolhe os poucos merecedores de ingresso em um mundo perfeito, enquanto o restante segue relegado à miséria, a segunda expande os mundos que orbitam ao redor desse processo. Há um nítido investimento em cenários, figurinos e efeitos especiais na hora de dar vida tanto ao precário Continente, quanto ao utópico e paradisíaco Maralto. Muito do aspecto gráfico da série melhora e talvez isso esteja ligado a mudanças no corpo técnico da produção.
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Comandante Marcela (Laila Garin): Vilã que a série necessitava... |
A condução dos personagens surpreende: a série consegue entregar evoluções pouco maniqueístas, mostrando a reação dos protagonistas a traumas e dinâmicas psicológicas complicadas, de modo que cada um deles atravessa uma montanha-russa de emoções e situações que lhes conferem complexidade. É difícil construir uma história em que todos seus protagonistas repensem diversas vezes suas ações ao longo da trama e mudem de lado de acordo com o contexto, sem a perda da coerência na construção dos personagens. Mas, mesmo com tantas viradas, em nenhum momento se questiona os rumos escolhidos da trama.
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Rafael (Rodolfo Valente), Joana (Vaneza Oliveira), Michele (Bianca Comparato) e Fernando (Michel Gomes): De que lado você está? |
Além disso, se na primeira temporada as relações entre os personagens - com exceção, talvez, de Ezequiel e Michele - se operam em níveis superficiais, optando por focar em suas motivações individuais, agora isso é subvertido. Cada personagem ganha seu próprio núcleo, apresentando-nos as jornadas pessoais de cada um, enquanto, paralelamente, eles enfrentam um inimigo comum. Desenvolver melhor a relação de Michele e Joana ou de Rafael e Fernando foi um ponto alto, mas o que deu a série um ar de evolução em seu desenvolvimento foi o aprofundamento das tramas de cada um deles, além de apresentar novos e cativantes rostos. Entre os personagens novos, o destaque fica com com a Com. Marcela (Laila Garin), que, de forma inesperada, cresce e dá conta do recado, se revelando uma vilã digna de por exemplo, Game of Thrones.
Temos uma maior definição do que é a sociedade do Continente, explicando porque a cidade fica no fundo de uma cratera, quanto do Maralto ,revelando a verdadeira história do tão citado “casal fundador”, e tal qual a de tantos mitos fundadores na história humana, encobre uma grande mentira. Notamos que apesar de toda a pobreza, carência e ignorância que o Continente é mais vivo e colorido (com festas híbridas de carnaval e culto pentecostal) vivendo em função da esperança, contrastando com o asséptico, elegante e estéril (em mais de um sentido) Maralto, em que se vive bem, com as garantias de uma vida segura mas carregando a necessidade de manter aquele sistema de “meritocracia” para assegurar o status quo.
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O Continente, apesar da pobreza, também ganha mais cor, vida e credibilidade... |
Escolher o lado e o lugar a que cada um pertence é o mote desta temporada. E acompanhar uma ficção (ainda por cima nacional) que se encaixa tanto dentro da nossa realidade é tão interessante quanto incômodo. Prova de que acertaram no tom e no modo de contar a história. E também é um sinal de que precisamos de mais obras nacionais que, mesmo indiretamente e por formas ficcionais, discuta tão bem a disparidade dentro da sociedade e das injustiças que nos cercam diariamente. A Causa - o grupo que é contra o processo - impressiona com uma certa reflexão, como quando um líder fala a um candidato a se infiltrar no Processo: “- o Maralto é uma ilha de sedução! Lá qualquer ideologia desvanece!” e também com sua coragem em enfrentar as adversidades impostas e, ao fim da temporada, com certeza te deixará refletindo sobre escolhas, ideais e, principalmente, união. Claro que no final, tudo sempre acaba saindo diferente do que é planejado pois, a dinâmica da vida sempre se impõe aos jogadores seja de que facção, forçando avanços, retrocessos e algumas vezes acordos inesperados que podem abrir novas possibilidades. Somente o tempo e a sensatez de seus personagens dirá.
E que venha a terceira temporada...
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Painel de divulgação da 2ª temporada pichada com o símbolo de "A Causa": estratégia criativa de marketing |
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